por Rodrigo Guedes de Carvalho
Claro que hás-de ter razão, claro que não me diz respeito. Até parece que te esqueces de como nos conhecemos afinal. Na manifestação, não há nada mais sensual do que uma manifestação quando somos novos. Manda-se à fava a timidez, damos por nós a gritar e a rir, tocam-se mais perto os corpos, todos os gestos parecem consentidos, nenhum fica mal. Roçam-se as roupas na confusão, a tua mão tocou a minha, foi de propósito, foi sem querer, que interessa isso, estamos próximos. Claro que és tu que tens razão, que isto que gritamos agora faz mais sentido do que daquela outra vez, em que acompanhei a uma manifestação uma rapariga que me interessava, só a oportunidade de estar perto dela, sentir-lhe o cheiro, pode ser que, pode ser que, só quando lá cheguei percebi que se gritava pela vida, qualquer coisa de que não me lembro bem, não ao aborto, abaixo as clínicas de assassinos, só Deus nosso senhor põe e dispõe de nós. Deu resultado, sabes, dormi com essa rapariga, deu resultado insurgir-me contra esse crime, percebes, toquei-a ao de leve, de propósito, sem querer, aquilo uma confusão de gente e cheiros e gritos, dormi com ela, teria dito o que ela quisesse. Mas claro que estava errado, desculpa lá contar-te isto, é só para veres como sou sincero, claro que isto agora faz muito mais sentido, sim à interrupção voluntária, claro que as mulheres não podem ser obrigadas a situações desumanas, a recorrerem à clandestinidade, quando há uma coisa tão simples em que muita gente por acaso nem pensa e que tu trazes tão clara pintada na barriga, com a letrinha redondinha de uma amiga a quem pintaste de volta, aqui mando eu, é o que trazes na barriga, aqui mando eu, no meu corpo. Dormi contigo depois dessa manifestação que fazia, claro, muito mais sentido. E para mais apaixonei-me, se bem te recordas. Dormimos essa noite e muitas mais, fizemos férias juntos, fizemos planos, jantámos, fomos à praia. Essas coisas que se fazem. Por isso não me entendas mal hoje, não se trata da manifestação, claro que a nossa é que fazia sentido, e não a da outra beata, abaixo os assassinos, abaixo, seja isso o que for. Se te falo disto hoje é porque no meio de tudo isto gostava que me emprestasses a caneta para eu também pintar qualquer coisa no meu corpo, não sei onde, não sei o quê, mas qualquer coisa que te pudesse lembrar que não engravidaste um dia por imaculada concepção, que na barriga que é tua, e isso não tem discussão, começou a crescer um botãozinho que me parece que fui eu a pôr lá, não, claro que não, que o teu direito ao teu corpo faz mais do que sentido, que não te sentes apta a procriar por agora, que te sentes demasiado jovem, que te angustia a responsabilidade, que queres ter o direito de decidir sobre a tua vida e não ficar à mercê dos acidentes, claro que sim, mas só te peço que repares que nem me disseste nada antes de largares para Espanha, porque o corpo é teu, aqui mandas tu, claro, mas repara que não sei o que escreva nem onde escreva no meu corpo, mas algo me diz, algo me diz que tive alguma coisa a ver com isso, quer-me parecer que o que crescia dentro de ti, dessa tua absoluta barriga sem discussão era também (desculpa) um pouco de mim, e não me entendas mal, o mais certo era eu entender tudo e concordar com tudo, estar ao teu lado, pegar-te na mão, mas confesso-te aqui (desculpa) que saber que está feito e já não há nada que eu possa dizer me deixou assim um vaziozinho. Não tanto por essa coisa que ainda não era, mas por outra que vejo que também não é. Nós. A palavra que eu tinha escrito no coração, também sem tu saberes.
na Máxima de Janeiro
3 comentários:
Coração? As in "cuore"???
bjs
j.
"Nós"... uma palavrinha pequena com significado grande, construída por coisas grandes e destruída por coisas pequenas. Boa escolha de texto! (desculpem o abuso de espreitar o vosso blog!)
nada disso!
gostamos muito de todas as visitas!
é sempre bem-vindo!
:)
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